Palito de dentes mentolado e a crise no mercado de RPG
Quando vejo a profusão do termo "crise" aplicado ao mercado de RPG, percebo que existe um abismo entre o que se quer dizer e o que realmente existe para ser dito. Acredito que os leitores já devam ter visto inúmeros artigos e comentários sobre a crise, quão melhor se leram sobre outras crises, crises financeiras, crises de mercado e não apenas sobre a "crise no mercado de RPG".
Desta forma, todo mundo já deve estar careca de saber o que crise significa em sua etimologia: Krisis, em grego significa ruptura, separação e no contexto em que se aplicava, podia ser perfeitamente entendido como "momento de reflexão". Tem ainda o discurso "auto-ajuda corporativa" que sempre lembra que a palavra usada para crise, em chinês, é a mesma usada para oportunidade, mas esse não é o caso. Não acredito em "auto-ajuda corporativa" de monges e executivos. Qual é o nível desse monge no fim das contas? E o executivo? Que nem classe básica é.
Voltemos então à ruptura. Globalmente, a crise do subprime expôs uma crise de crédito generalizada e serve de base reflexiva para o que já se projeta como um "novo capitalismo" mais sustentável e menos especulativo. O que será amanhã é diferente do que era ontem e isso é fruto de uma crise.
Evidentemente, numa crise de crédito, o Mercado (com letra maiúscula) sofre achatamento. Parte do montante de dinheiro circulante se descobre composto de dívidas podres repassadas continuamente e, de uma hora para outra, o rei está nu. Frente a isso, ou as empresas mudam ou morrem. Sobrevivem aquelas que repensam seus modelos e produtos a fim de se alinhar com o novo momento econômico. Perder dinheiro não sinônimo de fechamento das portas, o bom empresário sabe ganhar dinheiro e sabe como perdê-lo da melhor forma possível também. Igualmente evidente é: se o seu modelo de negócios se baseava em maior medida em capital de risco, com investimentos gordos de grupos que visam retorno de longo prazo, melhor sorte da próxima vez. Pergunto: algum investimento em RPG era baseado em capital especulativo ou investimento de risco? Não.
Ontem no almoço, vi um produto que elegi símbolo de vitória em meio à crise. Essa eleição é puramente arbitrária e infundada, a faço com os poderes a mim concedidos por ser blogueiro. O produto em questão é um fantástico palito de dentes com a ponta mentolada, que garante o frescor da sua boca enquanto você tira o fiapo de picanha que emperrou na sua obturação. O palito mentolado está alinhado com a filosofia Starbucks de negócios: transformar pequenas coisas em grandes experiências. Num mercado pequeno, commodity (pouco valor agregado ao produto fora o seu preço final) e possivelmente de baixa escalabilidade (não sou especialista em palitos de dentes, mas desconfio que ninguém fique milionário com eles) o produto consegue se reposicionar frente a sua concorrência oferecendo uma versão Premium para clientes diferenciados. No fim, criar uma nova experiência para os seus produtos ainda é um bom caminho.
Quando vejo certos comentários acerca da crise no mercado de RPG, parece que se fala de crise como uma crise sentimental, de casamento ou namoro, aquelas crises tristes que te paralisam, deprimem e te transformam numa máquina de chorar em frente a TV enquanto assiste o episódio de Friends onde o Ross e a Rachel finalmente ficam juntos. Crise não é e nunca foi sinônimo de imobilidade. Crise nunca deixou ninguém de mãos atadas e nem nunca comeu o cérebro de ninguém. Zumbis fazem isso, crises não.
Dos poucos empreendimentos de RPG no Brasil, um número ainda menor deles se reentendeu em meio à crise. Conto nos dedos de uma mão as empresas que buscaram licenças mais baratas, licenças que permitam mudanças no acabamento do produto visando um preço final menor e que racionalizaram seu calendário de lançamentos. Poucas são também as que souberam lançar seus próprios produtos. Menor ainda é o número de empresas que estão buscando criar para os seus produtos uma experiência diferenciada. No mercado internacional de RPG já vemos iniciativas tanto na experiência da compra (como as impressões sob demanda) quanto experiências de uso (como o D&D Insider), mas nada realmente disruptivo ou inovador.
Termino com a impressão de que as empresas que trabalham com RPG estão despreparadas para uma vivência mais arrojada e criativa no mercado. Estando ele em crise ou não. Na última RPGCon, destaco um apontamento feito pelo representante da Devir, que falou sobre investimentos numa aproximação diferenciada com o seu público através de oficinas. Nada muito diferente do que foi publicado no Paragons sobre publicidade em RPG.
Concordo com tudo isso, mas ainda acho que falta mais investimento na relação entre o consumidor e o produto e não apenas entre o consumidor e a empresa. As empresas que trabalham com RPG deveriam ser as maiores interessadas no fomento de clubes de jogos, eventos e outros canais de intimidade com o seu público, isso é indiscutível. Mas questiono até onde o próprio produto tem sido usado para criar esse canal de experiência. A compra de um livro de RPG deveria representar a entrada num espaço exclusivo, fantástico, que possibilitasse vivências diferentes e estreitasse o relacionamento entre a marca e o comprador.
Isso não deveria ser difícil quando falamos de RPG. Jogos, e RPG entre eles, são experiências que viram produtos. Será que o caminho inverso é mesmo tão difícil de conceber?