domingo, 20 de abril de 2008

Se eu posso brincar que Deus sou eu

Como diz a música dos Mutantes, para que ser normal se podemos brincar de divindade? Essa idéia tem aparecido com força em diversos lançamentos de RPG. Por um lado, não é novidade, RPG sempre tratou do extraordinário. O coração da maior parte dos jogos de representação é o mito. Mesmo os que retratam uma suposta normalidade, a vêem pelo prisma do fantástico. Os jogos incitam você a trilhar o caminho de heróis. Ainda assim, temos deuses diferentes aparecendo nas mesas.

É difícil, e possivelmente vão, tentar traçar uma linha de tempo dos RPGs sobre deuses. Esse tipo de saber enciclopédico serve apenas para gerar disputas arqueológicas de quem cava mais fundo para encontrar a múmia. Aqui vamos apenas elencar algumas opções e pensar essas linhas de jogo enquanto tendência.

O grande legitimador desse movimento é a série Scion da White Wolf (2007 e 2008). Digo legitimador pois a presença do gênero no catálogo de uma grande editora é sinal de aceitação do público. Antes de Scion, esse tipo de jogo era freqüente em editoras pequenas e, muitas vezes, independentes. Nesse ponto, RPG enquanto produto segue o mesmo caminho que a música, literatura ou cinema: aquilo que desperta em produções menores e ganha aceitação popular pode atingir massa crítica até cair na trilha das grandes entidades do mercado.

A primeira vez que pensei haver um gênero em formação foi quando conheci o RPG Nobilis (editado em 1999 pela Pharos Press e em 2002 pela Hogshead Publishing). Neste jogo os personagens são mortais eleitos por divindades (chamadas de Imperadores) para lutar contra entidades que desejam o fim da criação. Os personagens representam aspectos da realidade dominados pelo seu Imperador, como a guerra, o sol, a colheita e o que mais puder ser pensado. O sistema tem ares de sofisticado por não usar dados e ter uma resolução de conflitos bem simples. A edição de 2002 ganhou uma série de prêmios, como o Origins na categoria apresentação gráfica. Nobilis ascendeu ao status de cult e acendeu a discussão sobre RPGs que operam numa esfera acima do mundo material, que se passam em ambientes metafísicos que se relacionam com o real sensível sem estar contidos nele.

Posteriormente, tomei contato com New Gods of Mankind (Novos Deuses da Humanidade - Dark Skull Studios), um RPG onde se é um Deus guiando sua tribo de seguidores num mundo ainda em construção. O perfil deste jogo é diferente de Nobilis, as regras que incluem atos como ira divina (onde se mata um número cavalar de mortais num único lance) dão um tom mais exagerado ao jogo. NGoM corta os intermediários e não é um RPG sobre avatares ou incarnações divinas, seus personagens são o próprio poder, que luta batalhas com outros deuses que geram catástrofes entre seus seguidores.

Já em pesquisa sobre o assunto, encontrei o interessante Divus Ex. Um RPG gratuito onde os jogadores são deuses em conflito e o mestre de jogo representa o destino dessas divindades. Tanto a criação dos personagens quanto a resolução das ações é baseada em cartas de tarô. A função de narrar a história é distribuída entre todos os participantes, tornando o resultado final mais colaborativo. O jogo é mais competitivo do que RPGs mais convencionais, mas acerta ao estimular lutas de ego e manipulações políticas olimpianas.

Após esses exemplos, de volta ao Scion da White Wolf, acredito ser apenas o último título da série, God, um verdadeiro RPG sobre divindades. Os dois primeiros livros (Hero e Demigod) representam a escalada do personagem rumo a saída do mundo físico, sendo mais próximo de RPGs heróicos convencionais, onde as causas e efeitos ainda estão amarradas ao cotidiano. Apenas no terceiro livro as preocupações e agendas dos personagens transcendem e se tornam mais abstratas, estando cada vez mais longe das preocupações mundanas. Mantém-se o objetivo de combater os Titãs, mas os métodos mudam de natureza.

O mesmo comentário se aplica a Godsend Agenda (Khepera Publishing - 2001), que usa mitologias e divindades apenas para colorir um ambientação que, em síntese, é mais um jogo de super heróis. As conspirações e conflitos retratados nunca deixam de ser mundanos e mesquinhos perto das motivações por vezes sublimes ou misteriosas que costumamos atribuir aos deuses.

Um verdadeiro jogo de divindades, portanto, é aquele que convida os jogadores a deixarem de lado as questões do dia-a-dia e a pôr o ego acima das amarras da realidade. A vontade só encontra adversário legítimo em outras vontades concorrentes e não em trivialidades terrenas. Estas apenas sofrerão as conseqüências das decisões divinas com a passividade que lhes é própria.

O pequeno notável da Ronin Arts

Já não é de hoje que eu tenho admiração pelo Phillip Reed. O conheci quando um dos meus RPGs favoritos na adolescência, Whispering Vault, foi adotado pela Ronin Arts, empresa para qual colabora.

O mais recente lançamento da Ronin Arts sob a tutela de Phillip Reed é o talvez menor RPG do mundo: vsOutlaw. Por menos de 3 dólares, você adquire um folder colorido, impressão de luxo, não muito maior que um encarte de CD. São 6 páginas com as regras completas para jogar um RPG de velho oeste. Não é um faroeste fantástico, mas o foco está nas ficções de faroeste (pulps e televisivas), e não na história da colonização do oeste americano como esta se deu. Então, em posse de todos os esteriótipos possíveis de filmes italianos e americanos da sessão da tarde, um grupo pode sentar e se divertir.

O próprio jogo é recomendado para jogadores experientes com pouco tempo livre, pois vsOutlaw é simplório embora intenso e não funciona para jogos longos ou campanhas. O sistema é similar a outro sucesso inesperado de Reed, vsMonsters: poucos atributos, alguns bônus e penalidades em coisas específicas e uma mecânica de cartas de baralho. É tão simples quanto: pegue o seu atributo, some ou subtraia de suas característica relevantes, puxe do baralho um número de cartas igual a esse somatório e escolha a maior carta.

A própria origem de vsMonsters é curiosa. O RPG nasceu no 24h RPG contest, um concurso que veio na onda do 24h Comics Contest, onde equipes se propõem a escrever um RPG inteiro em 24h. Na visão de Reed, seu esforço foi um fracasso, mas vsMonsters logo ganhou admiradores que motivaram a Ronin Arts a lançar uma edição de luxo e fazer da idéia uma série, sendo no vsOutlaws seu primeiro lançamento. Para o futuro, a empresa promete vsPirates, que deve ter um formato semelhante. Se você quiser desenvolver jogos com o sistema vsM, pode baixar o seu SRD (System Reference Document, um aquivo com todas as informações sobre as regras).

Você pode baixar o vsMonsters orinal de graça nesse link. O RPG é sobre caçadores de monstros no século XVIII, inpirações em Solomon Kane e Edgard Alan Poe. Divertido e simples de jogar, ideal para jogadores que não tenham paciência para sistemas complexos e grandes campanhas. Que entendam que RPG pode ser um jogo de sábado a tarde entre amigos e não um leviatã de livros caros e matemática exagerada.